Lendo sem propósito

Recentemente decidi voltar a ler. Desde que entrei na faculdade e consequentemente, não precisei mais construir um repertório para citar em minhas redações do ENEM, o hábito da leitura foi completamente jogado pela janela.

É importante deixar claro que esse hábito de leitura não era hobby ou um passatempo. Eu encarava como apenas algo que eu precisava fazer para ir bem em um vestibular e depois nunca mais me seria útil: a forma padrão de se encarar qualquer conteúdo que cai em uma prova.

Sendo assim, durante o meu ensino médio, principalmente no terceiro ano, eu li alguns livros de Aristóteles, Camus, Harari, e até mesmo Nietzsche (do último eu não entendi uma frase sequer) para usar de base para algum argumento na redação e depois engavetar todas essas informações na minha mente.

Até porque, aquela seria a única ocasião existente para utilizar esse tipo de repertório. Em qual outro momento da minha vida eu precisaria citar um autor para defender a minha tese? As últimas discussões em que entrei em uma roda de conversa foram sobre as seguintes teses:

  • Espresso da Sabrina Carpenter é de fato uma música boa
  • Ana Castela não é o equivalente brasileiro da Dua Lipa (sim, conheço alguém que acredita nisso)
  • O Neymar deveria se aposentar
  • New Jeans foi a melhor coisa que aconteceu no k-pop
  • A metodologia da sala de aula invertida é uma desculpa para professor não ter que trabalhar

Em nenhum desses papos de botecoTM, caberia uma citação à Albert Camus para falar a respeito do absurdo da condição humana (talvez a discussão sobre o Neymar?). A única pessoa que eu conheço que casualmente cita Jean Paul Sartre no meio de uma conversa é uma amiga minha que cursa psicologia, e eu a considero claramente um caso perdido.

Dito tudo isso, não sei se posso considerar essa fase da minha vida como tendo o hábito da leitura. Me parece mais um dever de casa que eu precisava fazer. Igual quando o meu professor de português do oitavo ano passava um livro para cada aluno da turma ler e escrever um resumo sobre em uma folha de almaço até o final do bimestre. Era uma leitura? Sim. Mas não era uma leitura simplesmente pelo ato de ler. Era uma leitura procurando alcançar algum objetivo.

Quando eu digo que quero voltar a ler, é voltar a ler sem propósito. Sem nenhum compromisso. Ganhando nada. Todas as leituras que eu fiz nos últimos 10 anos foram com algum propósito.

O Machado de Assis que eu li no fundamental foi com o propósito de escrever um resumo para o professor de português. O Aristóteles que eu li durante o ensino médio foi com o propósito de usar de argumento na redação do ENEM.

Saindo dessa fase da minha vida, entrei direto em um curso de engenharia, onde o mais perto de uma literatura que eu tive foi o livro O Cálculo com Geometria Analítica 2º Edição do Leithold, com o propósito de não rodar em Cálculo III.

Essa abominação de livro que eu não entendi uma frase sequer…olha só igualzinho Nietzsche!!!!!!!

Minha última leitura foi com o propósito de aprender mais sobre liderança, pensando em exercer melhor o meu cargo atual no trabalho.

Acho que o último momento da minha vida em que eu realmente li um livro apenas pelo prazer da leitura, sem propósito nenhum, foi entre 2013 a 2015, época em que eu estava obcecado por O Senhor dos Anéis e li todos os livros do Tolkien que haviam sido traduzidos para o português até então.

Mas aí também é trapaça porque em 2013 eu tinha 10 anos. Nada que você faz com 10 anos tem um propósito. Você simplesmente existe e ponto final. Praticamente um pet.

A verdade é que a nossa sociedade (olha lá, a pessoa mal volta a ler um livro e já quer fazer uma análise social) sempre quer ganhar algo em troca. Tudo tem que ter alguma utilidade, e quando aparentemente não tem, a gente inventa: Ler???? Faz bem pra saúde…previne o Alzheimer.

Pouco a pouco essa mentalidade foi corrompendo todo tipo de arte que a humanidade já foi capaz de inventar. A estética virou um produto. O apreciar a arte perde cada vez mais o sentido.

Silencio, estou comtemplando uma obra de arte

Apreciar uma arte nunca teve propósito. Utilidade zero. Um dos livros que mais mexeu com minha mente, foi um livro do professor Clóvis de Barros Filho, com o título bem provocativo A Felicidade é Inútil.

No livro o professor explica que tudo que é útil só tem valor fora de si, ou seja, para algo ser útil ele precisa de outra coisa para lhe dar valor. Da mesma forma que um colírio é útil para lavar os olhos: Se não houvesse olhos, o colírio teria valor. Sendo assim, a felicidade não é útil, pois ela tem valor em si mesmo, não precisando de algo externo para lhe dar valor.

Ironicamente eu também li esse livro na época do vestibular…

Enfim. Onde eu quero chegar com tudo isso é que recentemente eu decidi voltar a ler. Comprei um kindle usado, baixei um monte de livros nele, e se alguém me perguntar o porquê de eu ter voltado a ser um leitor, eu responderei:

“Por motivo nenhum”.